Crônica de Rubem Braga " Um Sonho"

 Um Sonho


Não posso escrever outra coisa. E não devia escrever nada hoje. Penso um instante no que sentirão os leitores: essa coisa que me emociona de maneira tão profunda, o sonho que ainda dói no corpo e na alma, será para eles uma história vulgar; pior ainda, precisarei escrever com muito cuidado, para que esse instante de infinita pureza que eu vivi não pareça, a outrem, apenas um pequeno trecho de literatura barata.

Na verdade não houve nem mesmo um beijo, ou, se ele perdeu qualquer sentido, para ficar apenas dentro de mim essa impressão de doçura  profunda  e perfeita felicidade. Aquela mulher estava nua. E escrevendo “mulher nua” no jornal, como soa a escândalo! Seria preciso escrever com uma grande delicadeza para fazer sentir o que senti naquele momento: beleza, pureza - alguma coisa tão limpa e tão suave, além de qualquer desejo, apenas o sentimento da vida mansa daquela pele de um dourado  pálido.

Além  dos nosso sentidos há um outro - mas eu não estou falando  de coisas  espirituais, eu estou falando em sentimentos vividos em um instante em que não há diferença entre as coisas materiais e espirituais. Se as linhas do seu corpo ainda existiam, eram como uma vaga lembrança, um desenho imaterial suspenso no ar. O que me emocionava era a carne, como se eu vivesse a vida de seus tecidos, a sua doce vida perante o ar - leve como um sussurro de ramos longe, como um ruflar de ave imponderável, um murmúrio perdido na distância. E seu corpo era tão belo que senti um aperto na garganta, e os olhos úmidos.

Perdido! Eu lutava confusamente para não despertar de todo, pois sabia que então estaria perdido para sempre esse corpo feito de carne e de sonho. Uma angústia se apossou de mim, a claridade da janela me feria os olhos, afundei a  cabeça no leito para salvar essa visão de vinte anos antes.

E ainda o revi por um instante, como se estivesse sumindo em uma luz dourada, e na luz se perdendo, voltando a ser apenas luz.

Desperto. Penso um instante nessa mulher de quem há tantos anos não tenho notícia nem quase lembrança, essa que foi perfeita na dignidade e na pureza de sua nudez - e que hoje ainda não sei em que cidade ou país, não sei ao lado de quem - nem sei mesmo se ainda vive. Sua pessoa, sua risada, sua amargura, e o som de sua voz, tudo se perdeu em mim. Mas por um instante viveu, no meu sonho, aquele esplendor suave de uma nudez, que eu guardara tão quietamente no fundo de minha emoção como se quisesse proteger de todo o lirismo e de toda a sensualidade o momento melhor de minha vida.

Maio, 1952.



Rubem Braga, nascido em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo, em 12 de janeiro de 1913, e morreu no Rio de Janeiro em dezembro de 1990.

 Exclusivamente cronista  escrevia para jornais e revistas.

Gosto muito de suas crônicas e deixo a dica quem gosta de uma leitura, rápida e fluida, vale  a pena adquirir o livro “ 200 crônicas escolhidas” do autor Rubem Braga.






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